Dilemas Humanos/Urbanos – Uma análise do livro O Chamado da Noite de Carlos Ribeiro
“Escrever não é apenas derramar palavras no papel, mas desconstruir e reconstruir, ao mesmo tempo, a realidade e a nossa maneira de vê-la”. Carlos Ribeiro |
Na imaginação somos transportados a lugares inventados cheios de significados, conhecemos personagens que singularizam a cidade descrita de diversas formas pelos escritores. Assim podemos sentir os cheiros da cidade, passear por suas ruas, entender seus dilemas, captar sua cor. Como nos mostra Silvio José Conceição (2005): através das cidades é possível a criação de relações em várias vias [… ] poderia ser a alma de vários outros profissionais: o sociólogo, o geógrafo, o arquiteto, o urbanista, mas é a de um ser que consegue ultrapassar os muros do conhecimento disciplinar e imprimir nas suas cidades as múltiplas possibilidades de percursos dos seus personagens, de suas tramas e ainda do “nosso caminhar” em seus espaços concebidos. TUAN (1978: 194) completa estas idéias ao afirmar: “ a literatura poder ser geográfica por abordar temas como espaço, lugar, natureza e ambiente, e pode ser uma rica fonte para os estudos geográficos por apresentar o mundo de uma forma diferente da que a ciência apresenta, visto que enquanto o cientista busca clareza e especificidade, o escritor busca a plenitude, o amplo e a perfeição”. Também na visão do próprio autor, Carlos Ribeiro, do livro aqui trabalhado existe uma relação entre a Geografia e a Literatura: |
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Dilemas Humanos/ Urbanos – Uma Análise do livro O Chamado da Noite de Carlos Ribeiro. |
“A literatura mais verdadeiramente realista
não é necessariamente a que aborda personagens de carne e osso vivendo em mundos concretamente descritos, mas aquela que fala dos nossos sentimentos mais íntimos e mais contraditórios”. Carlos Ribeiro. |
O Chamado da Noite se estrutura em cinco capítulos nos quais o escritor percorre um universo de sonhos com seus personagens rodeados de questionamentos e lembranças, retratando a condição dos mesmos na Salvador do século XX. Sobre isso LYNCH (1999:1) defende a idéia de que: cada cidadão tem vastas associações com alguma parte de sua cidade, e a imagem de cada um está impregnada de lembranças e significados. Nas palavras do autor se trata de um romance – ou sei lá como se possa defini-lo – que retrata outro aspecto típico da literatura urbana atual: a do isolamento, do desenraizamento, da despersonalização, da solidão. Sua atmosfera é também sombria, não pela violência, mas pela melancolia. Em sua narrativa, do livro já referido, o autor fala da modernidade e da solidão do ser humano (p.18): |
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E num misto de metáforas e geografias continua a vaguear: |
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O autor analisa o espaço da velocidade (automóvel) na cidade: |
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E prossegue falando dos cidadãos e da condição sócio-econômica de quem utiliza o ônibus: |
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A cidade vista do alto é diferente da visão de quem está mergulhado em suas ruas, conhecendo sua história, e RIBEIRO nos faz pensar nestas questões ao escrever: |
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CONCEIÇÃO (2005) coloca que assim como percorremos, passeamos e habitamos a cidade, ela nos habita e nos passeia. Marcamos e somos marcados no e pelo espaço urbano; nossos desejos e anseios ficam impressos na ruas das nossas vidas e das nossas cidades. PINHEIRO & SILVA (2004: 25) reforça estas idéias quando dizem que a cidade é um labirinto de caminhos, de veias de espaços rasgadas no espaço, que só a aventura pessoal pode penetrar, e um labirinto de signos que só a inteligência pode decifrar, na busca do seu sentido ou da sua ordem. Os dilemas humanos e a velocidade das técnicas são observadas pelo autor/personagem (p.46): |
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Num outro momento (p. 55 e 56) o escritor fala da cidade moderna (cheia de problemas) e a de sua infância (território de lembranças saborosas): |
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Aos poucos o personagem se seduz pela cidade, agora palco de sentimentos contraditórios:
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Numa outra fala RIBEIRO (p. 82 e 83) recorda ainda mais seu bairro, Itapuã, comentando as transformações urbanas que este passou tornando-o apoético: |
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Aborda também a forma com que o homem modifica o ambiente urbano de maneira fria e desordenada trazendo transtornos pra a vida na urbe (p. 83): |
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Na página 59 uma personagem critica o monumento ao 2 de Julho que para ela “simbolizava bem a farsa que é a preservação de nossos valores. […] porque na verdade, preservamos nada. Não preservamos sequer as pessoas!”. E prossegue falando da cidade dividida, da segregação imposta às populações carentes e do esvaziamento do discurso político: |
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A cidade é vista sob todas as luzes e condições atmosféricas possíveis (LYNCH, 1999, p. 1), em cima disso RIBEIRO a compara a uma mulher e fala da dificuldade que criamos de conhecer a cidade:
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Não Concluindo… Assim, os diversos personagens descritos pelo narrador transitam em Salvador revelando seus desejos e frustrações, trazendo idéias a respeito da modernidade e da condição solitária do ser humano. Sobre isso CONCEIÇÃO (2005) nos diz: a literatura, inspirando-se na urbanidade interpreta os dilemas humanos em sua forma, concentra pensamentos, sentimentos e ações vividos no espaço e ainda possibilita-nos a apreensão dos lugares outros, expostos e propostos pela via literária. É esse o elo que liga a ciência (Geografia) à arte (Literatura): a possibilidade de inventar lugares ou abordar os já criados numa forma poética permitindo ao leitor captar diferentes percepções acerca do real e do imaginário. Pois: |
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A Geografia e a Literatura tentam captar os diversos sentidos da cidade, sua estrutura, função e linguagem. Trazendo, ambas, para nós um universo de sonhos e imaginações que nos transportam a lugares desconhecidos. E nessa viagem enxergamos o diálogo entre arte e ciência que embora tenha visões distintas se propõem a refletir e representar a vida humana/urbana. Entrevista com o Escritor Carlos Ribeiro 1. Sua formação; Sou graduado em jornalismo e mestre em literatura pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente faço doutorado, também pelo Instituto de Letras da UFBA. Como jornalista, dediquei-me durante 15 anos à divulgação científica, na área da ecologia, e à documentação de regiões naturais, a exemplo de parques naturais e reservas ecológicas. Dentre os diversos trabalhos realizados nesta área, participei, em 1986, da IV Expedição Brasileira à Antártida, onde fiquei durante dois meses cobrindo as pesquisas brasileiras no Continente Gelado. Em 1994, fui à Estação Ecológica do Mamirauá, na Amazônia, também divulgar pesquisas realizadas por cientistas de diversos países na região. Publiquei reportagens em diversos periódicos, a exemplo da Revista Geográfica Universal, Horizonte Geográfico, Ciência Hoje, Ecologia & Desenvolvimento, jornal A Tarde, BBC Wildlife (Inglaterra) e Geomundo (EUA). Atuei também na área da Qualidade Total, pelo Programa Qualidade Bahia, da Fieb, e nos últimos anos dediquei-me especialmente à crítica literária, escrevendo reportagens, entrevistas e resenhas de livros para o jornal A Tarde, revista Iararana, que edito juntamente com Aleilton Fonseca e José Inácio Vieira de Melo, jornal Rascunho e outras publicações. Trabalhei também na editoria de cultura do jornal A Tarde, como repórter, e nos três últimos anos atuo, em regime de dedicação exclusiva, como professor de jornalismo da Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC, onde desenvolvo um projeto de pesquisa sobre o jornalismo baiano, e coordeno a implantação de uma editora. 2. Como começou a escrever? Publiquei meu primeiro conto, no início de 1978, no Concurso Permanente de Contos do Jornal da Bahia, então coordenado pelo jornalista e escritor Adinoel Motta Maia. Em seguida publiquei na revista Aqui Ficção, também coordenada por Adinoel, no início dos anos 80. Antes de escrever ficção, eu já havia preenchido diversos volumes de diários, num estilo que, visto retrospectivamente, já prenunciava o escritor, pelo tratamento literário dos fatos do dia-a-dia. Mas a necessidade de exprimir uma experiência pessoal intensa numa linguagem metafórica ou alegórica se deu a partir de uma vivência, até hoje inexplicável, que tive, no final de 1977, no povoado de Amoreira, na Ilha de Itaparica. Sobre isto, transcrevo o seguinte trecho de um depoimento que dei ao projeto Com a palavra o escritor, em setembro de 1997: “Até novembro de 1977, entretanto, ainda não me ocorrera a idéia de escrever qualquer coisa além das minhas anotações pessoais. Aconteceu-me passar o feriado de Finados com amigos no povoado de Amoreira, na Ilha de Itaparica, onde tive uma experiência estranha que imagino ter sido provocada por uma droga que colocaram na minha bebida. Resumindo: fiz uma viagem tão forte que ainda no dia seguinte pensei ter encontrado o Nirvana, materializado num pedaço de isopor, ao qual batizei como “Om”, mantra indiano que nos liga à força cósmica, ao Ilimitado, ao Indizível. Naquele mesmo passeio tomei uma pancada violenta na perna, que me deixou fora do circuito universitário por mais de um mês. Na confluência do Nirvana e da dor, apareceu uma outra novidade, quando tomei conhecimento do Concurso Permanente de Contos, organizado por Adinoel Motta Maia, no saudoso Jornal da Bahia. Com tempo de sobra (graças à cirurgia que tive que fazer na perna), e motivado pelo concurso, resolvi colocar no papel a experiência transcendental que vivi na Ilha”. 3. Livros Publicados; Três anos depois da minha estréia, no jornal, publiquei meu primeiro livro de contos, Já vai longe o tempo das baleias, pela Coleção dos Novos da Fundação Cultural do Estado da Bahia. Parte dos contos deste volume retrata aspectos do bairro e antigo povoado de pescadores de Itapuã. Depois, considerando as dificuldades de edição daqueles áridos e remotos anos 80, só voltei a publicar um livro em 1995, na verdade um magro volume de contos e textos poéticos intitulado O homem e o labirinto, lançado pela BDA Bahia. Antes, em 1989, havia ganho o concurso de contos de Academia de Letras da Bahia. Em 1996, eu e Aleilton Fonseca, organizamos a antologia Oitenta – Poesia & Prosa, coletânea comemorativa dos 15 anos da Coleção dos Novos, também lançada pela BDA. Um ano depois, publiquei o romance O chamado da noite, pela Sette Letras, do Rio de Janeiro, e, com Aleilton Fonseca, lancei o primeiro volume da Iararana – revista de arte, crítica e literatura, que já está em sua décima edição. Em 2000, lancei pelo selo As Letras da Bahia, da Secretaria da Cultura, o volume de contos O visitante noturno, e, em 2001, a minha tese de mestrado Caçador de ventos e melancolias: um estudo da lírica nas crônicas de Rubem Braga, pela Editora da Universidade Federal da Bahia – Edufba. Neste mesmo ano participei da antologia Geração 90: manuscritos de computador, organizada por Nelson de Oliveira e lançada pela Boitempo, e, em 2004, lancei o romanceAbismo, pela Geração Editorial. Também no ano passado participei daAntologia de Contos e Crônicas de Autores Baianos Contemporâneos, organizada por José Carlos Barros, e, agora com um artigo sobre os livrosEstorvo e Benjamim, no volume Chico Buarque do Brasil, lançado pela Garamond, em homenagem aos 60 anos do famoso compositor e escritor, organizado por Rinaldo de Fernandes. Ainda este ano sairá uma antologia de contos, também organizada por Rinaldo, pela Geração Editorial. 4. Fale um pouco dos personagens de seu livro O Chamado da Noite, analisado neste trabalho; Este romance – ou sei lá como se possa defini-lo – retrata outro aspecto típico da literatura urbana atual: a do isolamento, do desenraizamento, da despersonalização, da solidão. Sua atmosfera é também sombria, não pela violência, mas pela melancolia. É um romance lírico que, como bem assinalou a professora Lígia Telles, na orelha, “dá continuidade à tradição ficcional que situa o homem no cotidiano, sozinho em meio à multidão, dela extraindo, ao perambular pelas ruas da cidade, a matéria poético-narrativa, conforme o fizeram Baudelaire e Poe”. Seu espaço é o da memória: não o da memória luminosa que ilumina os acontecimentos vividos, mas da memória que une passado e presente numa mesma região penumbrosa, no qual vagam personagens mais assemelhados a fantasmas do que a pessoas reais, de carne e osso. É um texto lunar, daí a imagem constante da noite, do homem andando na noite, solitário, mergulhado nas lembranças de algo que se perdeu, irremediavelmente. Creio que ele tem muito a ver com a questão do simulacro, da imagem (muitas vezes distorcida) que se sobrepõe ao ser real. Ao contrário da ficção realista, na qual o autor empenha-se em tornar os seus personagens reais, o autor-narrador torna-se, ele mesmo, irreal, uma sombra vagando em meio a sombras até se confundir inteiramente com elas. 5. Você acha que a literatura, por nos permitir conhecer diferentes espaços, se aproxima da Geografia? A literatura e a geografia são áreas distintas do saber humano, mas, como todas as coisas, não existem de forma estanque. Se sondarmos as imagens que temos em nossas cabeças sobre diversas regiões e culturas do mundo, certamente elas reúnem partes do que vimos, pessoalmente, do que lemos sobre elas, em livros técnico-científicos, e, talvez, sobrepondo-se a tudo isto, as imagens construídas em nossa mente por uma infinidade de livros e filmes e pinturas. Com uma diferença: a imagem gerada por uma obra de arte tem uma carga emocional e afetiva a meu ver diversa da que é gerada pela descrição presente num livro de geografia. Eu sou fascinado por fotografias, desenhos e gráficos que retratam lugares, inclusive de aspectos geológicos da Terra, e isto sempre exerceu uma forte impressão no meu espírito. Mas a obra literária acrescenta a estas imagens a vivência dos personagens que se tornam nossas próprias vivências. Acrescentam uma atmosfera. Veja, por exemplo, as descrições de uma remota ilha da Carolina do Sul, no conto “O escaravelho de ouro”, de Poe. Não sei se elas correspondem ou corresponderam, de fato, às paisagens reais daquela região, mas o efeito estético provocado por essas descrições estão marcadas para sempre na minha sensibilidade. Da mesma forma que as assustadoras paisagens da Romênia, onde vivia o Conde Drácula; ou a estação orbital de Solaris, ou os becos ensolarados e coloridos do Centro Histórico de Salvador, em alguns romances de Jorge Amado, ou as opressivas matas do sul da Bahia nos romances de Adonias Filho. Paris, Londres, Nova Iorque, Viena, Moscou, Buenos Aires, Havana, Berlim, Canudos, Rio de Janeiro e tantas outras cidades estão para sempre “contaminadas” pelo imaginário dos escritores e de nós leitores, de forma que podemos até mesmo questionar se existe uma imagem objetiva, real, desses lugares. Mesmo em obras como as de Simenon, que pesquisava e descrevia nos mínimos detalhes o cenário das suas novelas. Vale lembrar, no entanto, que o conceito de geografia ampliou-se bastante nos últimos anos e ganhou uma dimensão muito mais ampla do que a de uma simples descrição da natureza, povos e culturas. Tornou-se, como em Milton Santos, nosso maior geógrafo, um instrumento crítico e até revolucionário de compreensão da realidade humana. E há questões importantes relacionadas ao pós-colonialismo, às migrações, ao desenraizamento, que estão muito presentes na nossa cultura e, também, na chamada literatura pós-moderna. Há um imbrincamento maior hoje das diversas áreas do saber, de forma que fica cada dia mais difícil criar compartimentos estanques. Portanto, não se pode pensar na superioridade de uma área sobre a outra, mas da singularidade de cada uma destas áreas do saber. E de como elas se complementam. |
Referências Bibliográficas LYNCH, K. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. |